segunda-feira, 19 de março de 2012

Agora, os mortos da vez em Bagdad são gays e lésbicas

Ser homossexual ou emo pode promover o
"castigo de Deus" pelas mãos de islâmicos.
Cadáveres com a cabeça esmagada aparecem nas ruas da capital do Iraque como restos de um naufrágio abandonados na praia. Para os homossexuais e os seguidores da moda emo, desafiar os rígidos cânones que marcam a ortodoxia xiita dominante custa a própria vida.

"Obrigaram-no a morder a ponta de uma cadeira antes de estourarem a sua cabeça com um bloco de cimento. Ele se chamava Saif Asmar e era meu amigo. Amanhã isso pode acontecer comigo."

Ruby (nome falso para proteção da sua verdadeira identidade) se divide entre a ira e as lágrimas enquanto segura uma foto de um jovem apenas reconhecível após o brutal assassinato. Desde o início desse ano, esquadrões da morte têm realizado uma campanha de ataques contra jovens homossexuais ou aqueles seguidores da moda emo.


"Usar anéis, piercing no nariz ou ter uma tatuagem é sinônimo de ser homossexual, de adorar ao diabo ou de ambos", explicou à IPS esse jovem que abandonou a sua casa há um mês após ser ameaçado.

Ruby nota um acréscimo considerável dos ataques desde o dia 6 de fevereiro. "Naquele dia mataram Ahmad Arusa em Sadr e outros quatro em Geyara", ambos distritos xiitas de Bagdad. "Já são mais de 80 assassinatos desde então", denunciou.

Num comunicado transmitido em janeiro, o Ministério do Interior iraquiano classificou a tribo urbana emo de grupo "satânico", e destacou que o corpo especial da polícia se encarregaria de "combater tal fenômeno".

Hoje, os mortos por esmagamento em Sadr, no leste da capital, somam-se aos queimados com ácido em Jadimiya, no noroeste. Além do método empregado, quase todas as vítimas viram seus nomes numa das listas que frequentemente apareciam nos muros das ruas de Bagdad.

Ruby aponta diretamente o Exército Mehdi - liderado pelo clérigo e líder político Muqtada al-Sadr - e denuncia a impunidade ao redor desses crimes.

"O nosso governo é uma milícia", se queixou o jovem na clandestinidade. "A única solução é o Ocidente pressionar Bagdad para que acabe com esse pesadelo".

A vice-presidente da Organização para a Liberdade das Mulheres no Iraque, Dalal Jumma, lamenta pela inexistente separação entre Estado e religião no Iraque após a invasão militar estadunidense em 2003, que pos fim ao regime de Saddam Hussein (1979-2003).

"As milícias penduram cartas nas paredes com nomes e sobrenomes de supostos homossexuais, aos quais acusam, inclusive, de satanismo por terem participado do martírio do imã Hussein", neto de Maomé, morto no século VII, disse Juma na sede da organização no distrito Karrada, localizado no sudeste de Bagdad.

IPS teve acesso a uma dessas cartas, supostamente encontrada em Sadr. Trata-se de uma lista com 33 nomes de pessoas, localizadas pelos números dos blocos habitacionais nos quais residem, e antecedida de uma advertência, redigida com numerosos erros de ortografia:

"Se não encerrar sua atitude licenciosa em quatro dias, o castigo de Deus será dado pelas mãos dos mujahedins (guerreiros islâmicos)", lê-se entre os desenhos de duas pistolas.

No escritório do partido de Muqtada al-Sadr, o Sadr, o líder religioso e político local Brahim Jawary desmentiu qualquer influência de seu grupo nos assassinatos. Tanto esses crimes como "toda conduta imoral e contrária à religião" hão de ser investigados convenientemente, disse.

Assassinatos de lésbicas ainda mais invisíveis

Não foi uma carta na parede, mas um e-mail, que levou a jovem Madi a abandonar a sua casa. Hoje esconde tanto a sua localização como seu nome real.

"Me ameaçavam dizendo que falariam para a minha família que sou lésbica se não abandonasse o país imediatamente", lembrou essa jovem de 26 anos numa entrevista num lugar indeterminado em Bagdad. O medo de Madi não é sem fundamento.

"Muitas lésbicas morrem no Iraque nas mãos dos seus irmãos mais velhos. É um crime 'de honra' maior, uma espécie de assunto doméstico sobre o qual o governo não realiza nenhuma investigação", disse.

A organização Iraque LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), com sede em Londres, estima que mais de 720 pessoas morreram nas mãos de milícias extremistas no Iraque nos últimos seis anos.

Madi garante ter perdido muitos amigos próximos e não vacila quando se trata de destacar os culpados.

"As milícias de Muqtada al-Sadr e as forças de segurança são as mais agressivas contra nós, dede uma fatwa - lei islâmica - emitida há quatro anos que especificava, literalmente, que os homossexuais deveriam ser executados da maneira mais severa."

Madi descreveu casos de pessoas esquartejadas ou queimadas vivas, e acrescentou que os médicos conhecem a natureza desses crimes pelo estado em que chegam os cadáveres. A IPS confirmou essas afirmações com médicos que pediram para permanecer no anonimato.

Num relatório publicado em agosto de 2009, a organização de direitos humanos Human Rights Watch, com sede em Nova York, assegurou que muitas vítimas eram torturadas para que revelassem nomes de futuros alvos.

Em vários casos eram descritos tormentos com o uso de cimento que, com a ingestão maciça e forçada de alimentos e laxantes, leva a vítima a uma morte atroz.

O mal-estar por essa onda de violência é evidente inclusive atrás dos muros da Zona Verde, a área protegida de Bagdad onde se encontram escritórios do governo e embaixadas.

"Não temos feito mais que retroceder quanto aos direitos humanos desde 2003", ano da invasão estadunidense, lamentou a parlamentar Ashwaq Jaf, da Aliança Curda.

"O problema de fundo é que estamos sujeitos aos códigos, a Constituição iraquiana, por um lado, e a sharia - compêndio de leis islâmicas - por outro. As contínuas contradições entre ambas desembocam em vazios legais e, consequentemente, no desamparo das vítimas", disse Jaf à IPS.

Nem todos órgãos do poder veem assim

"O estigma de ser homossexual no Iraque não é nada mais que um claro reflexo da nossa sociedade", disse Saad al-Muttalibi, alto representante do partido Dawa, do primeiro-ministro Nuri Al Maliki.

Muttalibi responsabiliza pelos crimes as "milícias sunitas próximas a Al-Qaeda ou as milícias iranianas", sem fazer menção das xiitas da Al Sadr. O segundo mandato de Al Maliki foi possível pela maioria obtida na coalizão com o partido Sadr.

Sunitas e xiitas são adeptos de dois ramos divergentes da religião muçulmana. Os xiitas constituem 60% da população desse país. Os sunitas, uma minoria que chega aos 20%, eram o grupo islâmico dominante no regime de Saddam Hussein.

"A situação está se normalizando progressivamente e tem se tornado cada mais fácil ver casais de meninos caminhando de mãos dadas por Karrada", assegurou Muttalibi.

Certo ou não, a maioria dos comerciantes desse distrito concorrido já retirou das vitrines e janelas, correntes, piercings ou quaisquer outros objetos que possam levar a trágicos mal-entendidos.

Tradução: Jônatha Bittencourt, editor de CessarFogo.com


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