quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Tínhamos um Saddam, agora temos 100"

Hamed al-Maliki já desistiu de tentar ver luz. "Agora acho que não há esperança", diz, logo no início da conversa, a fumar, como dirá tudo sempre a fumar. "O Iraque é uma grande tragédia sem fim." Que não faltem cigarros, pelo menos.


Maliki é dramaturgo e nunca esteve tão pessimista. Expressões como "falta de esperança" e palavras como "tragédia" não dizem nada sobre esse pessimismo.


"Até Deus está contra nós. Envia-nos calor e seca, como os americanos trouxeram o urânio empobrecido e abriram as fronteiras para deixar entrar os terroristas e garantir que não chegavam à América. Um dia, o Iraque vai ser só deserto. A Mesopotâmia verde vai tornar-se no Sara. E o deserto vai trazer extremistas. Só vai haver deserto e céu. Nenhuma beleza. Nem uma árvore. E as mentes dos que tiverem ficado vão tornar-se como a areia, que parece mole mas não se pode engolir. O Iraque vai ser um deserto de terra e de pensamentos."


Pessimista ameaçado
Talvez Maliki tenha sido sempre um pessimista - afinal, ele escreve peças e filmes a partir de pedaços de história do Iraque e da região - e a diferença é que agora é um pessimista ameaçado de morte. "Tantas vezes. Tantos colegas meus foram mortos. Muitos fugiram. Não vale a pena ficar. Perdemos. Falhámos. Agora, só nos resta fugir para sobreviver."


Maliki diz que não é pessimismo, que acredita mesmo no que diz. "Mas espero estar enganado."


Salim, o seu amigo engenheiro que veio com ele ao nosso encontro, na recepção do Hotel Meliá Mansour, diz que às vezes Maliki o assusta quando fala. "Mas ele tem de fugir. Já lhe disse muitas vezes", acrescenta.


Maliki quis encontrar-se no Meliá Mansour. "Ali era o meu escritório", diz, apontando para um sofá e para uma mesa. "Passava horas a escrever e ninguém se atrevia a ocupar o meu lugar quando eu não estava. Agora já não escrevo. Para quê? Estou seco." Maliki não escreve desde 2008, quando deixou de acreditar no futuro e no país. No Iraque, agora é mais conhecido pela série de televisão Fobia Bagdad do que pelas peças que o fizeram ganhar prémios em Itália ou em Marrocos.


Na rua ou na TV
Fobia Bagdad era a vida impossível da classe média entre raptos e bombas. Foi um sucesso, mas o Governo ordenou que fosse interrompida pelo pessimismo que inspirava. Porque uma coisa são as bombas e a morte na rua, outra bem diferente é oferecer isso aos iraquianos sob a forma de ficção a seguir aos noticiários e ao jantar.


Maliki deixou de escrever mas tem muitos projectos. Um sobre os judeus que já não existem no Iraque e no qual começou a trabalhar há anos: "Vai ser um filme sobre os judeus forçados a sair do Iraque em 1949. Foram privados de nacionalidade e levaram com eles a sua riqueza. Podem matar-me por isto".


Outro projecto de Maliki tem a ver com a polémica do uso do lenço islâmico na Europa, que ele quer tratar através de famílias iraquianas que nos últimos anos encontraram refúgio em países europeus.


Este iraquiano, que nasceu muçulmano xiita e se diz não religioso, acredita que os belgas e os franceses têm todo o direito de proibir o lenço: "Se não gostam da cultura desses países, porque é que lá querem viver?", interroga-se. Mas este seu texto também será sobre a fobia islâmica, porque "ao extremismo responde-se sempre com extremismo" e Maliki, "um homem liberal", não teve visto para entrar em Itália.


"Londres dá asilo a extremistas e não dá visto a homens da cultura. Os que fizeram explodir os comboios em Espanha e os metros em Londres descendiam de famílias extremistas, mas a Europa não deu visto a um artista como eu", lamenta. "Esta vai ser a cena final: a Europa sem nenhum muçulmano". Antes da cena final, é o próprio Maliki que vai tentar viver na Europa, na Bélgica, em França, onde o deixarem ficar.


Sobram fronteiras
Maliki deixou de escrever (ou quase) porque pode ser morto por quase tudo o que quer escrever. O mais certo é nem saber quem o vai tentar matar. "Tínhamos um Saddam antes de 2003. Agora temos 100. Toda a gente quer ser profeta, califa. Uns já se vêem, outros ainda não. Se os americanos saírem, então vamos ver os milhares de Saddam que há por aqui. Eu tinha medo no tempo de Saddam. Havia uma linha vermelha muito grande. Mas eu conhecia a fronteira. Agora temos muitas linhas vermelhas. Traçadas dentro do Iraque e mesmo nos países à volta. Há um grande processo de assassínio no Iraque. Mas não conhecemos o assassino e a defesa é impossível."No tempo de Saddam Hussein, conta, o regime encomendou-lhe uma série sobre a vida do ditador. "Eu recusei. Fiz-me de raposa." Depois, em 2003, os políticos que regressaram do exílio pensaram que Maliki tinha apoiado o regime. "Pensavam que quem tinha ficado apoiava o Saddam. Mas a verdadeira resistência éramos nós, os que cá estavam."


Até 2003, Maliki trabalhava no Teatro al-Rasheed, um teatro russo que também era cinema, diante do Meliá Mansour. Mas depois o Al-Rasheed foi pilhado e ele foi despedido.


Maliki diz que no Iraque faltam "poetas" e gente que "oiça a voz dos poetas". Os poetas cansaram-se e calaram-se. Ou talvez não tenham gritado o suficiente.


"Quem é educado, não pode travar a guerra. Só consegue curar as feridas depois. Admito o nosso fracasso, em 2007 e em 2008 talvez pudéssemos ter curado essas feridas. Preparámos as nossas armas mas já ninguém queria ouvir. Ninguém ouve a voz do poeta, mas todos ouvem o som da bala. Se falo assim é porque de alguma forma ainda tento ser ouvido. Queria gritar em todas as ruas de Bagdad "cuidado, cuidado, cuidado". Cada pessoa simples pode ser uma bomba humana se for liderada por um príncipe da guerra."


Faltam heróis e causas
Faltam "heróis", como sempre faltaram heróis aos árabes. Sobram "líderes religiosos e sectários" e "príncipes da guerra". Para alguns, Saddam era um herói, "porque lutava".


Para além de heróis, também sempre faltaram "causas" aos árabes, afirma Maliki. "É por isso que nos matamos uns aos outros."


O Iraque nunca foi um país, afirma o dramaturgo. "Os britânicos confundiram as alianças tribais com nacionalismo árabe. Uma treta. Os mais educados poderiam ter feito algo para criar um sentido de nação, mas já ninguém os ouve. Combater as tropas estrangeiras criou alguns nacionalistas, mas isso não chega. Agora, toda a região está prestes a mergulhar numa guerra civil sectária", afirma. Sunitas contra xiitas, extremistas contra extremistas, muçulmanos contra muçulmanos, como no Iraque dos últimos anos, mas ainda pior. "Começou em segredo, mas vai acabar por se travar em público."


Maliki acredita que antes de vir o deserto virá então a grande guerra - "nunca haverá paz com diferentes grupos étnicos, aprendemos isso com a Segunda Guerra Mundial" -, uma noite escura, mais escura que a noite de 2005 a 2008, quando morreram centenas de milhares e ele escreveu Fobia Bagdad. "Vai ser tudo negro. Eu tenho as estatísticas da história para antecipar o futuro."


Até pode haver futuro, diz, mas, para isso, tem de haver antes uma limpeza: um processo de assassínio, como este em curso, mas diferente, em que os "príncipes da guerra se vão matar todos uns aos outros". Depois, então, talvez os poetas voltem a ter voz.

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